o barco de madeira do guadiana

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PASSADO E PERSPECTIVAS DE FUTURO

Se nos fosse pedido para representar, através de uma imagem, a fisionomia do território compreendido nos actuais limites do concelho de Moura, sempre diríamos, com alguma propriedade e também elevado espírito de imaginação, que se trata de uma forma que lembra um daqueles peixes coloridos e espalmados dos bancos de coral dos Mares do Sul, cuja boca se apresenta voltada a poente, beijando o Guadiana, e a barbatana caudal apontada a Espanha, naquela que é a zona da Contenda.

Este "peixe geográfico", apesar de afastado do mar, surge sulcado por extensa rede de linhas de água, de que se destaca o Guadiana, o grande Rio do Sul da Península. Num passado distante, foi esta a via natural e usual de penetração para o interior da Ibéria. A diversidade de recursos disponíveis e compartilháveis ou objecto de troca (hídricos, piscícolas, cinegéticos, florestais, agrícolas e sobretudo metalíferos), em que o vale e alguns dos territórios envolventes ainda hoje se mostram pródigos, explica por sua vez as opções e estratégias de ocupação territorial por parte das primitivas comunidades humanas.

No que diz respeito a Moura, essa riqueza reflecte-se ao nível da qualidade e quantidade dos aquíferos, dos bons solos de aluvião na zona de confluência do rio Ardila com o Guadiana e das jazidas das serras de Ficalho, Adiça e Preguiça, cuja fecundidade em ferro, cobre, zinco e galenas argentíferas surge já celebrada em escritos de autores antigos.

Será precisamente com o surgimento da mineração e metalurgia por volta do III milénio antes da nossa Era, e o comércio daí derivado, que se dará o encontro deste mundo ribeirinho do interior com outras culturas e civilizações, em particular do mundo mediterrânico, contacto esse que irá desencadear uma verdadeira revolução na forma de as comunidades autóctones se relacionarem com o rio, que não já na perspectiva estrita da sua utilização como banco de matérias-primas ou fonte alimentar, tal como sucedera até aí.

A partir do Bronze Final (1200-800 a.C.) e sobretudo durante a lª Idade do Ferro (800-500 a.C.), com o incremento da exploração mineira, mais se intensifica a presença humana em torno do grande Rio do Sul. A sua bacia transforma-se numa fervilhante via de comunicação e de circulação de produtos, servida por malha densa de trilhos e veredas de pé posto e pela própria rede fluvial, que em muitos casos consente a navegação. Pela grande artéria fluvial se escoam os recursos da terra, do solo e do subsolo, com destino provável a Mértola, entreposto comercial e último cais escalado pelos navios do Mediterrâneo oriental e do Magrebe. Como moeda de troca, os mercadores autóctones recebem sobretudo produtos manufacturados, provenientes de lugares tão distantes como são os portos fenícios e gregos, revelando alguns desses materiais, cerâmicos e metálicos, uma estética e sofisticação apuradíssimas, conforme dá conta a informação arqueológica disponível.

Todo este trânsito de partidas e chegadas, que contribuiu para a vitalidade económica que esta zona do Sudoeste Peninsular viria a conhecer durante praticamente um milénio, processa-se sob a alçada e o controlo apertado de grandes povoados fortificados, estrategicamente instalados na cumeeira de esporões debruçados sobre os principais cursos de água, a proporcionar um amplo domínio visual do vale e da envolvente.

Também o actual território do concelho de Moura conta com alguns desses habitats: Azougada, S. Bernardo, Ratinhos e Safareja. Os sítios em questão, como no-lo atestam os achados arqueológicos, constituem exemplos importantes desses contactos e trocas com o Mediterrâneo, o que, associado à estratégia da sua implantação para efeitos de controlo do acesso ao Guadiana e Ardila, nos leva a admitir como provável a navegação fluvial a montante do Pulo do Lobo - não apenas entre povoados mas também entre estes e os entrepostos comerciais -, algo que actualmente se encontra apenas confirmado para o troço do rio a jusante de Mértola.

Seria uma navegação assegurada por embarcações certamente bem diferentes das grandes naves que na altura sulcavam o Mediterrâneo e alcançavam Mértola através do Guadiana. Avaliando as condicionantes colocadas pelo próprio curso do rio, onde os escolhos e os baixios são frequentes a montante de Mértola, não custa imaginar que fossem embarcações muito manobráveis, leves, de fundo chato, comprimento diminuto, reduzido calado, construídas inicialmente em vime e couro e só depois em madeira, calafetadas com gordura animal ou resina, impulsionadas por remos e que se transportavam com alguma facilidade por terra, quando, por exemplo, diante de zonas de navegação impraticável, como é o caso dos troços do Pulo do Lobo e da chamada "Corredoura". Aliás, esta prática "anfíbia" permanece viva nos dias de hoje, sendo habitual, sobretudo durante a estação seca, os pescadores passarem de um pego a outro transportando eles próprios as suas embarcações.

Sucedâneos das embarcações primitivas, a barca do Guadiana e o batel do Ardila, que encontramos já mencionados nos forais reais, asseguram a linha evolutiva da navegação nesta zona da bacia do Guadiana. Trata-se de barcos de madeira, impulsionados a remos, que asseguram a ligação entre as duas margens nos chamados "portos": porto Mourão ou porto de Évora, por exemplo. A barca de passagem do cais do Fragal, nas imediações de Moura, que ligava esta localidade à margem de Portel e Vidigueira, constituía até há cerca de trinta anos um importante serviço público, cuja exploração era arrematada, em hasta pública, pela Câmara Municipal. Transportava de tudo um pouco: "pessoas", "carga" e "cavalgaduras", como referem os textos antigos. De qualquer modo, estas embarcações, que constituíam presença habitual onde o rio se interpunha entre as principais vias terrestres da altura, nunca deixaram de conviver com os característicos barcos de pesca que a bordo transportavam sistemas móveis de pesca artesanal, como os tresmalhos, as nassas, as tarrafas e os galritos.

Mais recentemente, no contexto das transformações tecnológicas, económicas, sociais e ambientais ocorridas durante as décadas de 60 e 70, a construção e abertura ao tráfego de novas vias e sobretudo de novas pontes unindo a margem esquerda do Guadiana ao resto do Alentejo haveria de vibrar o golpe de misericórdia no já longo processo de decadência das formas de transporte tradicionais do grande Rio do Sul. Já antes, a concorrência do caminho-de-ferro tinha provocado algumas mudanças, mas não tão definitivas.

Se com o progresso na área dos transportes e vias de comunicação, as barcas de passagem deixaram de ter razão de existir, os barcos de pesca, esses, resistirão enquanto durarem os últimos pescadores profissionais. Neste momento, no concelho de Moura, restam três ou quatro pescadores em actividade operando com barco, todos rondando ou já entrados na casa dos sessenta anos de idade, o que faz temer pela sobrevivência da pesca artesanal e das embarcações, de cujos princípios e processos construtivos aqueles ainda guardam os segredos.

É, pois, devido à possibilidade real de perda irrecuperável das práticas e das cadeias de transmissão de técnicas e saberes artesanais, ligadas à construção em madeira e à própria navegação fluvial, que se justifica, em primeira análise, o surgimento de uma Escola-Oficina de construção naval no concelho de Moura. No entanto, para além desta preocupação com a preservação e fixação de saberes-fazer, de tecnologias e de artefactos com pelo menos três milénios de presença na bacia, o que se procura alcançar com esta iniciativa è também a utilização ou se se quiser a reutilização, a revalorização e promoção deste património enquanto recurso a mobilizar na óptica do desenvolvimento.

Por outras palavras, trata-se conjugar tradição e modernidade, buscando nas especificidades históricas, culturais e ambientais (os barcos de madeira do Guadiana combinam todas estas valências!) a promoção de actividades que diversifiquem e modernizem a economia local. Esta nova abordagem do aproveitamento das embarcações tradicionais de madeira articula-se de forma estreita com o turismo e com as perspectivas que nesse domínio se abrem com a criação do plano de água de Alqueva e com uma melhor utilização dos cursos de água do concelho e da região.

 
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