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Para
chegar a estes dias de Inverno com um sorriso nos lábios foi preciso
fazer pela vida durante o ano inteiro: em Fevereiro, “alimpar”
a rama das oliveiras como manda o saber de gerações a fio
de podadores; alqueivar a seguir; por alturas do Verão, desinfectar
as árvores dos parasitas habituais; em seguida “desburricá-las”;
rezar finalmente para que o tempo cumprisse com a sua parte.
Agora que o frio acampou por estas terras de Moura, é bom que se
acenda logo essa fogueira, bem quente e perfumada, pois os homens e as
mulheres aqui do rancho não tardarão a precisar das mãos
quentes para ripar e varejar todas essas fiadas de oliveiras a perder
de vista, inchadas que estão do negro azeviche dos seus frutos:
galega, a mais miúda, cordovil, a mais encorpada, verdeal, a mais
saborosa. A apanha começa então, com as varas e varejões
empunhados na vertical, batendo a rama com golpes certeiros, como se fora
um combate entre guerreiros que se querem bem. Caída nas mantas
como granizo escuro, a azeitona é recolhida em cabanejos e conduzida
até às tulhas do lagar, onde será removida de impurezas.
As melhores são escolhidas para a curtimenta: golpeadas e temperadas
com sal, alhos e oregãos e assim conservadas numa talha de barro
vidrado servirão de conduto durante todo o ano.
Entretanto, no lagar tudo está a postos para começar a safra.
Ontem cedendo ao peso triturador de galgas cónicas de pedra, após
o que metida em seiras e comprimida na prensa, hoje já entregue
a modernas e sofisticadas máquinas monitorizadas por computador,
a azeitona não resiste por muito tempo a este sacrifício
em honra dos deuses, Atena e Afrodite entre os eleitos, acabando por se
transcender em fio fino e brilhante de azeite novo pronto a assistir um
pedaço de pão acabado de desenfornar.
Em tarefas potes, talhas, almudes, alqueires, canadas e nos quartilhos
de então, ou nos garrafões e garrafas dos dias de hoje,
onde é notória a aposta no design, na marca, na denominação
de origem e na produção biológica como prova da qualidade
do produto, se mede a profusão desta riqueza que, a par do vinho
e do pão, constitui a base da equilibrada e saudável dieta
Mediterrânica. A esse respeito são muitos os exemplos da
sua participação na cozinha alentejana. A gotinha nas sopas
de alho, o gaspacho regado com essa divina gordura, e mais a açorda,
as migas, o grão e o feijão, os pratos de caça, o
ensopado de borrego..., e até a doçaria popular se encarregou
de o recrutar. Já para não falar de outros gastos e utilizações
que a história regista: fonte de iluminação em lucernas,
candeias e candelabros, bálsamo da higiene pessoal, inspirador
de mitos, lendas e cultos, alguns em nome das mais diversas divindades,
imprescindível em rituais religiosos e profanos, em mezinhas, benzeduras
e promessas, nas unções sagradas do baptismo e da extrema-unção.
É esta, afinal, a sina do azeite desde que o mundo é mundo;
com ele é toda uma civilização que vem ao de cima.
texto:
António Filipe Sousa |
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