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O QUE É DOCE NUNCA AMARGOU

A azáfama começou no dia anterior, ao final da tarde. Vai recomeçar agora, ainda a madrugada vai alta. Na cozinha estão três bancos de amassar, cada qual com o seu alguidar de louça vidrada. Este é para as tortas e popias, que por cá se chamam os bolos da amassadura. A diferença é que as popias são sovadas com farinha. Este aqui é para os bolos fintos, mais conhecidos por costas. E há também quem lhes chame mandongos. Aquele ali há-de ser para os folhados fofos: o pastel de gila e a rodilha, uma espécie de caracol, em que a massa cortada em canudos é enrolada em círculos com a ajuda de uma cana.

Os ingredientes são quase iguais, como se vai ver. Não falta a farinhita de trigo, uma pinga de água morna, o fermento, o sal, a banha, o azeite, o açúcar, o mel, os ovos para as tortas e popias, a canela, as ervas de cheiro, o doce de gila caseiro para os folhados e um cálice de aguardente. As diferenças encontram-se nas medidas, nas combinações, nos tempos da finta e da cozedura, nos recheios, nas voltas que a massa leva.

Antigamente, nos tempos em que comer doces era um luxo, levava-se um tabuleiro com estes bolos mais rústicos para serem cozidos nos fornos de poia. Depois de retirado o pão cozido, quando o forno estava mais descaído, colocavam-se uns poucochinhos de bolos para a semana inteira. Eram sobretudo consumidos durante a estação fria, a acompanhar o café, que no Verão as banhas já não andam capazes.

Bolos assim mais finos, chegados até nós através do receituário conventual, só em ocasiões festivas, nos dias assinalados. Para além de casamentos e baptizos, no Natal tínhamos as filhós e os nógados, na Páscoa, os folares e o tão-bom-como-tão-bom, no Carnaval, os cuscurrões, o pão-de-ló, o bolo de mel. Pelo São João, que marca o fim das colheitas, também a festa da adiafa saía melhorada com a presença de alguns destes regalos.

Hoje em dia o consumo de bolos vulgarizou-se. E os bolos que se comem são outros. As pessoas procuram mais o bolo de pastelaria, o bolo de aniversário. É claro, mudam os tempos, mudam as vontades. Mas ficam saudades desses tempos, em que o bolo significava sobretudo a celebração da festa, o convívio e a amizade. A lembrança mais viva que guardo é ver-me a mim e aos meus irmãos de roda dos alguidares vazios, rapando as sobras de massa do fundo e das paredes com o Salazar.

texto: António Filipe Sousa

 
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