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A
madrugada está para durar e o frio de Fevereiro não dá
tréguas a quem o desafia. Sobre a terra orvalhada, o rafeiro está
meio a dormir, com um olho pregado e o outro fitando o dono no aprisco.
O pastor está de posse da ordenha, debruçado sobre ovelhas
e cabras o tempo todo, só parando para puxar o chapéu para
a nuca. O leite esguicha para dentro do ferrado como uma bátega
de água em dia de invernia. Cheira a essências de prado verde
e de mato bravio. Principia o alavão; tem lugar o milagre do queijo.
O leite chega à queijaria em cântaros de folha zincada. É
coado e levemente aquecido para que possa estar em condições
de receber o piso, feito de véspera, de pétalas secas de
cardo à mistura com um punhado de sal. A alquimia da fermentação
leva o seu tempo, qualquer coisa como hora e meia, tanto quanto demora
a transformação do leite em massa dentro do asado. Com a
certeza dos gestos e rituais repetidos desde há muitos anos, mãos
frias repletas de segredo e sabedoria conhecem melhor do que ninguém
as temperaturas óptimas do leite e da coalhada, as voltas a dar
à massa ou o manejo dos panos e dos cinchos. Em cima do tampo da
queijeira retira-se agora o soro com a ajuda de panos porosos, repisa-se
e espreme-se a massa coagulada dentro de formas até deixar de deitar
chorrilho. Exaurida e cinchada a massa, o que temos como resultado é
já o queijo pronto a ir curar sobre uma esteira de caniço.
O amadurecimento dura umas semanas, cerca de um mês no mínimo.
A partir daqui é
quase certo a qualquer queijo arriscar-se a ser o centro das atenções
de uma roda de amigos. Assim mesmo, como quem experimenta uma espécie
de plenitude, o gume da navalha entra nele, fatia após fatia, para
o pôr à prova. Uma maravilha destas vai pedindo a companhia
de um pão caseiro e de um cabaço de vinho e mais umas poucas
de almas boas que vêem no petisco um modo de enganar o estômago,
de estreitar a amizade e de celebrar a festa. Às tantas, o ambiente
apurado propicia uma oportunidade para os cantadores de modas alentejanas
mostrarem do que são capazes, e, nesse caso, não há
como nos deixarmos levar pela inevitabilidade das coisas.
texto:
António Filipe Sousa |
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