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NO DIA DE SÃO MARTINHO, IRÁS À ADEGA PROVAR O VINHO

São Martinho. Nesse dia assinalado, no tempo em que a terra se enche dos primeiros brilhos, todos os caminhos vão desembocar nas muitas adegas das vizinhanças. Na companhia de um grupo de devotos a condizer, que procuram, nesse ambiente íntimo e secreto de capelas, o supremo encontro com o bendito vinho. O périplo começa com uma visita à locanda do mano Serrano, velho conhecido e um senhor alquimista de mostos e balsas, que detém como poucos os preceitos e até os mistérios mais insondáveis desse processo em que a uva se transforma, depois de esprimida, e apaziguada a ira da fermentação, na bebida eleita dos deuses. Este ano não será diferente de outros anos, e é com essa certeza que o anfitrião anuncia aos amigos um preparado de tinto sem igual à base de Trincadeira, Aragonês, Moreto, Alfrocheiro, variedades que entram nos encepamentos da maioria das fazendas em redor da Amareleja, Póvoa e Moura, e são trabalhadas na perfeição por uma terra e clima benfazejos. Eis então chegado o momento em que os candidatos a provadores se acercam do pial, espécie de altar votivo da adega, onde aguarda o início do ritual uma correnteza de bojudas talhas de barro pesgado, inspiradas nessas ânforas trazidas pelos romanos da vizinha Grécia, que por cá andaram há muito tempo e praticaram esta cultura como ninguém. E é para facilitar a sagrandura desses potes vinários de quinhentos ou mais litros que se ajeitam duas ou três palhinhas de centeio, à laia de espicho, metidas no batoque de cortiça. Vá então de encher copos com o tinto acumulado no fundo do alguidar de barro vidrado. Depois as mãos fecham o cerco a esses vasos de vidro fosco, que um ergue enquanto os outros repetem o gesto, numa saúde aos presentes ou avaliação sumária de aromas e cores, antes de os olhos se semicerrarem numa espécie de regozijo comum ou senha de conspiração contra a tristeza, a desgraça ou o estado miserável do mundo. Feitas as devidas apresentações, entra o petisco em acção. Umas lascas de toucinho da salgadeira, umas rodelas de carne ensacada, umas fatias de queijo enxuto, que dias não são dias e todos somos filhos de Deus, todas oferendas que é habitual partilhar nestas libações, empurradas ainda e sempre por renovados copos do mais puro. Como o verão que pede o trilo das cigarras, o petisco só convence quando acompanhado da melhor prosápia em assembleia ou de umas modas cantadas em uníssono que ressoam nas paredes de taipa, nas abóbadas e no lajedo de lambaz para nos encher a alma de enlevo e maravilha.

texto: António Filipe Sousa

Eu gosto muito de vinho
Não o posso dispensar
Quando estou na bebedeira
O meu destino é cantar

Se queres que eu cante bem
Dá-me gotinhas de vinho
O vinho é coisa santa
Faz o cantar miudinho

És filho da cepa
Neto do velho cacho
Não me subas à cabeça
Desce por aqui abaixo